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Meide in Brazil, NUNCA

Roiko’i Haguã peraa va’kue roiko’i aguã
(Devolvam a nossa terra que vocês tomaram)

Traço a traço, em um movimento cíclico e constante, como o som de um tambor que, a cada batucada, ganha mais força e corpo. De perto, as ranhuras seguem paralelas, parecendo sulcos cravados em telas e muros. Vistas em perspectiva, formam expressões, cicatrizes, delimitam o espaço e configuram o vasto universo criativo do artista Francisco Rodrigues da Silva, conhecido por seu pseudônimo Nunca. O paulistano, de 36 anos, é dos mais proeminentes nomes da cena do grafite nacional e internacional e dono de um estilo extremamente reconhecível, que já deixa discípulos nas ruas e nas telas. Após dezenas de exposições em instituições ao redor do mundo, ele inaugura “Meide in Brazil”, sua primeira mostra individual em território brasileiro.

Tal estilo tão característico faz alusão às gravuras em metal usadas desde o descobrimento do Brasil para retratar índios, costumes, fauna e flora do País pelos colonizadores ¬– que enviavam tais documentos para as respectivas colônias portuguesas, holandesas e francesas. Essa referência se une a transgressão da linguagem usada por Nunca como artista contemporâneo, que vive em uma grande metrópole, em um mundo globalizado e conectado, mas que segue marginalizando suas origens. “Faço da minha arte uma forma de questionar o que nós, como povo, estamos criando e cultivando culturalmente, do que é legitimamente brasileiro, do que é verdade ou mentira do ponto de vista histórico da nossa nação”, diz.

Não à toa, as figuras criadas por ele trazem consigo a origem do Brasil, mas de forma particular. Nelas, são retratados indígenas usando logotipos de marcas e produtos da cultura estrangeira ¬– uma forma de explicitar, segundo o artista, a desvalorização da nossa cultura. Mas não são apenas os indígenas que estampam telas e murais feitos por Nunca em spray ou tinta acrílica ao redor do globo. Esses personagens também aparecem misturados a outras culturas marginalizadas – um paralelo direto ao grafite, manifestação urbana malvista aos olhos de parte da sociedade. Nessa antropofagia revisitada, Nunca mistura referências externas aos modelos brasileiros e traz como resultado algo inédito.

O pseudônimo usado por ele desde o início de sua relação com a arte e com as ruas reforça seu pensamento transgressor. “Adotei-o a partir do momento que entendi que não se podia expressar-se de forma artística pela cidade. Ao mesmo tempo, são autorizadas as propagandas de produtos, cigarros e bebidas alcoólicas. A ideologia de consumo nos é empurrada goela abaixo a todo o momento. ‘Nunca’ veio como uma negação a toda essa negação da nossa liberdade”, explica.

Este olhar para o consumo desenfreado aparece em Brinde, tela iniciada pelo artista há dez anos e que compõe a mostra. Sua produção aconteceu logo após retornar de Miami, em 2009, quando participou do primeiro time a colorir murais de Wynwood Walls. Nele, retratou um personagem indígena arremessando um tênis a dois consumidores, ambos afogados em meio a objetos adquiridos com frequência pela sociedade atual. “Hoje, vivemos um processo de neocolonização, em que marcas e produtos são os agentes de formação cultural do País”, afirma. É habitual esse elo entre seus diferentes formatos de produção. “Está tudo ligado, as obras, os murais, nós e nossos antepassados.”

Ana Carolina Ralston
Curadora

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